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Será que precisamos de democracia participativa para salvar a democracia?

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14 October 2020
Read time: 4 minutes

Todos reconhecem hoje que as democracias em todo o mundo estão cada vez mais ameaçadas. O número de questões que têm de enfrentar - e às quais têm dificuldades em responder (justiça social, estabilidade económica, alterações climáticas, etc.) - coloca as nossas democracias em risco. Para além disso, um número crescente de pessoas sentem que não são ouvidas ou levadas em consideração pelos decisores políticos. Neste contexto os cidadãos reivindicam o direito a ter uma palavra a dizer nas decisões, escolhas e políticas públicas que são tomadas

A nível das cidades, os governos locais também não estão imunes ao que se passa e enfrentam a mesma situação que os governos nacionais, não parecendo estar preparados para responder às reivindicações dos cidadãos. No entanto, compreendem que têm de colaborar melhor e envolver os cidadãos nos processos de tomada de decisão e na governança local da cidade em geral. Entre as cidades conscientes desta realidade, 8 cidades europeias de pequena e média dimensão decidiram embarcar na audaciosa jornada da democracia participativa.

Estas 8 cidades reuniram-se a fim de criar a rede ActiveCitizens, contando com uma população que varia entre 35 000 e 95 000 habitantes, e com origens tão diversas como o sul, oeste, e leste da Europa. De Portugal (Santa Maria da Feira) a França (Agen e Saint Quentin), Itália (Cento), Alemanha (Dinslaken), República Checa (Hradec Králové), Roménia (Bistrita), e Estónia (Tartu). Todas as 8 cidades têm diferentes experiências com abordagens participativas, tendo algumas trabalhado já com métodos participativos, enquanto outras se encontram ainda no início da jornada. Contudo, todas têm em comum este sentimento partilhado de que precisam de ir mais longe, e que o podem fazer, juntando-se e aprendendo umas com as outras.

O objetivo da rede ActiveCitizens é bastante claro, passando por encontrar a melhor maneira de envolver os cidadãos na governança local das nossas cidades. “E por que razão?", poder-se-á perguntar. Bem, porque, "acreditamos que ao envolver os cidadãos na governança local podemos, de um modo geral, construir melhores políticas, serviços e cidades, bem como assegurar que estas sejam mais eficientes, mais adequadas, mais relevantes e mais adaptadas'

Mas porque é que precisaríamos de envolver os cidadãos na governança? Já temos representantes eleitos para o efeito! É o princípio da democracia representativa!

Sim, em princípio. Os representantes eleitos são eleitos para representar os cidadãos e "governar em seu nome". E governam. Mas, em muitos casos, não representam 'de modo suficiente' o povo. E mesmo que o fizessem, será que isso os impede de colaborar com os cidadãos no âmbito das suas decisões durante todo o seu mandato? As cidades reconhecem hoje que integrar um certo nível de participação dos cidadãos (em alguns casos) no processo de tomada de decisão poderia ser não só útil, mas realmente necessário.

Participação dos cidadãos? Nem pensar!

Claramente, nem todos nas administrações locais (mas também nos governos nacionais) estão convencidos do valor acrescentado da participação dos cidadãos na governança. As razões para NÃO possibilitar a participação dos cidadãos são muitas. A fim de as identificar desenvolvemos, no âmbito da rede ActiveCitizens, um jogo de cartas chamado "Participação dos Cidadãos? Nem pensar!". Este jogo é composto por 42 razões para NÃO se possibilitar a participação dos cidadãos, tendo as cidades da rede sido convidadas a escolher as que mais frequentemente ouvem dentro das suas próprias administrações através dos seus colegas (quer funcionários públicos ou representantes eleitos).

 

Algumas das razões incluem: "a participação dos cidadãos retarda cada processo ou projeto", "a participação dos cidadãos é inútil porque os cidadãos não são especialistas", "é demasiado complicado trabalhar com os cidadãos", "os cidadãos são melhores a queixar-se do que a encontrar soluções", "os cidadãos não têm interesse em ações e assuntos públicos", "não há necessidade de participação dos cidadãos, já trabalhamos com ONG, sindicatos e associações de consumidores", "com os cidadãos, as conversas permanecem sempre superficiais e sem profundidade".

Sim, como podemos verificar, há ainda um longo caminho a percorrer para desconstruir estas inúmeras "razões"...

Mas... o que é que pretendem?

Há muitos objetivos que poderiam motivar uma cidade a envolver-se numa rede como a ActiveCitizens. Por conseguinte, foi pedido às 8 cidades da rede que expressassem quais eram as suas motivações... e aqui está uma pequena seleção das razões mais comuns que indicaram:

  • Pretendemos desenvolver uma cultura de participação e um sentido de cidadania ativa.
  • Pretendemos reconstruir a confiança entre os cidadãos e a administração da cidade.
  • Pretendemos que os cidadãos cocriem soluções (ideias, planos, agendas, ações) connosco, administração municipal.
  • Pretendemos facilitar o diálogo entre os representantes eleitos e os cidadãos.
  • Pretendemos recolher opiniões e pontos de vista dos cidadãos sobre assuntos ou ações públicas.
  • Pretendemos que os cidadãos participem ativamente em projetos e decisões de planeamento urbano.

Este conjunto de motivações realça a riqueza e diversidade de objetivos (mas também dos desafios) que as cidades querem abordar através da participação dos cidadãos: da confiança ao diálogo, da consulta à cocriação, de projetos concretos à agenda pública, e muito mais.

Quando promovemos a participação dos cidadãos, percebemos que há tantas coisas com que não estamos satisfeitos, enquanto administração local

Nenhuma das cidades que já têm um pouco de experiência com formas de participação dos cidadãos está 100% satisfeita com a forma como as coisas funcionam. "Primeiro, são sempre as mesmas pessoas que aparecem". São os chamados "suspeitos do costume". E, na maioria das vezes, todos eles estão reformados. Isto não é satisfatório do ponto de vista da administração pública". De facto, as cidades querem que os cidadãos sejam tão diversos e tão representativos quanto possível (de todos os habitantes e vozes potenciais). "Os cidadãos tendem a falar motivados apenas pelo seu interesse pessoal, não necessariamente pelo bem comum'", no entanto, o papel de uma autoridade pública é assegurar que as políticas e serviços públicos sejam para o bem comum.

Nos conselhos de bairro, decidimos que os cidadãos seriam eleitos pelos habitantes, mas percebemos que, uma vez eleitos, nem todos consultam necessariamente os cidadãos posteriormente". Ainda que a ideia fosse dar poder aos cidadãos, acabamos por ter apenas uma nova camada imperfeita de "democracia representativa", a nível micro de um bairro, em vez de uma cidade. É claro que todas as cidades estão a experimentar, testar, aplicar, explorar e aprender com as suas experiências, o que funciona bem, o que não funciona tão bem e o que não funciona de todo, para depois rever, mudar e redefinir os seus métodos de funcionamento. E os cidadãos contribuem para isso (pedindo certo tipo de formações em particular, sugerindo mudanças, etc.). Neste contexto, ambos os lados têm de aprender a colaborar melhor, pois não é uma coisa natural para nenhum deles.

Há esperança, há urgência, há pressão

A democracia participativa é um tema atual, sem dúvida. O número de artigos, notícias, jornais, livros, estudos de caso, sobre democracia participativa multiplicam-se como nunca se viu na última década. Ao mesmo tempo, as ferramentas, orientações, e manuais de todo o tipo estão também a multiplicar-se com o objetivo de apoiar as cidades na adoção de abordagens participativas no âmbito da sua governança. No entanto, a natureza atual do tema não está isenta de riscos. De facto, à medida que o tema se torna "cada vez mais popular", algumas cidades tendem a aplicar abordagens participativas, quer de má qualidade (ferramentas, métodos, formatos), quer pelas más razões (motivos dúbios, agenda oculta) que levam ao que se poderia chamar "participação pública ilusória". E isto pode ter efeitos desastrosos na democracia. Efetivamente, o número de cidadãos ativos dispostos a participar, até certo ponto, nos processos de tomada de decisão pública, não totaliza - sejamos honestos - milhões (ainda). Pelo que, promover a "participação pública ilusória" pode ter o efeito adverso de convencer os cidadãos mais dispostos a participar de que os processos de participação não passam de mero fogo de artifício, o que se revelaria dececionante, mais uma vez, reduzindo um pouco mais ainda a confiança dos cidadãos na política, e, consequentemente, no modelo democrático. Mas há esperança, porque os cidadãos estão presentes e dispostos a participar, e as administrações das cidades (como é o caso da rede ActiveCitizens) também estão cada vez mais inclinadas a caminhar para uma democracia mais participativa e pretendem fazê-lo corretamente, ou seja, com honestidade, transparência, atenção, cuidado e empatia.

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Texto da autoria de Christophe Gouache, apresentado a 2 de fevereiro de 2020