Rendimento Básico Universal: quem está a rir agora?
Edited on
28 December 2017Há alguns anos, muitas cidades teriam rido da ideia de introduzir um Rendimento Básico Universal. Avançando até aos dias de hoje, vemos o conceito a ser testado em zonas e cidades da UE, de Barcelona e Copenhaga a Estocolmo e Utrecht.
A Piada Catalã
Como escocês, já dei aos meus amigos catalães bastantes motivos para risos ao longo dos anos. O tempo, o estado das nossas respetivas economias, a gastronomia e, claro, o futebol: as fontes do seu divertimento coletivo são muitas.
Mais recentemente, porém, o motivo de riso de dois amigos de Barcelona era algo diferente. Enquanto tomávamos uma bebida, expliquei-lhes os planos da cidade deles para introduzir um programa-piloto de Rendimento Básico Universal (RBU). Excluindo a linguagem colorida, a conclusão deles foi que "Nunca vai funcionar aqui!"
Quando quis que explicassem o ponto de vista deles, as principais razões apontadas centravam-se nas noções de democracia e cidadania. "A nossa democracia é demasiado jovem. Muitas pessoas continuam a não confiar no Estado. Se o Estado lhes desse dinheiro para não fazerem nada, muitas pessoas considerariam que se tratava de uma loucura. Pode funcionar em Copenhaga ou Estocolmo, mas em Barcelona será um desastre. “
Alguns dias depois, estive com os responsáveis pelo programa-piloto do Rendimento Básico em Barcelona. Lideram a URBInclusion, uma nova Rede de Implementação URBACT focada em novas formas de solucionar a pobreza. Numa escala mais ampla, estão a entrar no B-Mincome, um ambicioso programa-piloto para introduzir o RBU nas zonas mais pobres da cidade, numa parceria que inclui a Fundação da Juventude. Financiado através do programa das Ações Urbanas Inovadoras (UIA), reflete o compromisso da administração da cidade para combater a pobreza urbana crónica de diferentes formas. Ao fazer isso, reconhecem algo que muitos de nós sabemos: que, independentemente das largas somas de capital investido nas cidades europeias, as desigualdades continuam a aumentar.
A experiência-piloto do RBU faz parte de uma nova abordagem radical, que tem por base o conceito do Rendimento Básico. Outros elementos do pacote coordenado incluirão a introdução de um esquema de moeda local, utilização extensiva de cláusulas sociais nos contratos públicos e a criação de percursos apoiados para o emprego, incluindo o voluntariado.
Durante a nossa discussão com a equipa do URBACT de Barcelona , decidi partilhar o ceticismo dos meus amigos catalães sobre as possibilidades de sucesso do programa-piloto do RBU em Barcelona. A resposta dos peritos da cidade foi interessante. "Eles podem ter razão. Poderá falhar. Mas o que fizemos no passado não resolveu o problema, por isso, precisamos de novas lógicas, precisamos de novas ideias. A inovação tem tudo a ver com arriscar. Se não tentarmos, nunca saberemos."
Rendimento Básico: Uma ideia que continua a crescer
Há cerca de um ano, escrevi sobre os planos da cidade holandesa de Utrecht para introduzir um programa-piloto de Rendimento Básico com a duração de três anos. Na altura, pensei que o RBU poderia ser uma das maiores ideias de 2016. Mas não esperava que alcançasse as proporções que tomou, não só na Europa, mas em todo o mundo.
No decurso desse ano, o programa-piloto de Utrecht continuou, com uma avaliação formativa a decorrer simultaneamente para testar o impacto em três grupos: o primeiro, que permaneceu com os seus benefícios sociais anteriores; o segundo, com benefícios sociais modificados e o terceiro, com um rendimento básico universal de € 960 por mês.
Entretanto, o conceito generalizou-se. Atualmente, há planos iniciados ou prestes a serem iniciados para testar o conceito na Finlândia, Escócia, e Canadá, entre outros locais. Cada uma destas abordagens adotou a sua própria versão do conceito de RBU. As questões principais incluem a calibração do nível de pagamentos e a idade mínima. Uma outra é o nível espacial ideal em que um modelo assim pode funcionar. Glasgow, Barcelona e Utrecht, no seu conjunto, defendem que seja a nível da cidade ou arredores.
Então, qual a razão do súbito interesse no Rendimento Básico?
No cerne deste debate encontra-se a questão de como solucionar a pobreza no século XXI. O próprio conceito de RBU não é novo. Já no século XVIII, Thomas Paine, revolucionário radical, defendia esta ideia. Mais recentemente surgiram elementos de um ambicioso programa-piloto de RBU em Manitoba, Canada, na década de 70 do século passado, que foi encerrado por uma administração conservadora que entrou em funções. Então, por que razão parece estar a ganhar força agora?
Uma série de questões específicas estão em jogo. Mas a razão principal é que num período de incerteza, perturbações e transformação, ideias que foram antes consideradas como noções marginais radicais começam a ter mais tempo de antena. Neste âmbito - especialmente em círculos de política urbana - existe uma aceitação de que muito do investimento anterior não solucionou a raiz do problema.
Em termos de oportunidade, o RBU está também a ganhar dinâmica porque potencialmente soluciona alguns das questões mais complicadas dos nossos tempos, ao mesmo tempo que aborda desigualdades de longa data, por exemplo, relacionadas com género. Examinemo-las agora.
Automatização e o desafio dos mercados de trabalho do século XXI
Será que uma vida de trabalho assalariado a tempo inteiro será uma realidade para uma pequena minoria de cidadãos europeus? Já não estamos no reino da ficção científica como parecia até há pouco tempo. Passos gigantescos na área da automatização e os avanços digitais continuam a esvaziar os mercados de trabalho, invadindo setores ocupacionais que outrora eram considerados intocáveis. Um estudo recente estima que cerca de 47% dos postos de trabalho estão em risco por causa da automatização. O grupo de reflexão Bruegel alargou esta análise ao mercado de trabalho da UE e concluiu que os países com uma proporção superior de empregos menos qualificados (nomeadamente, Roménia e Portugal) estão particularmente em risco, embora nenhum esteja isento do mesmo.
Estes movimentos tectónicos criam grandes desafios embora também proporcionem oportunidades, se as conseguirmos aproveitar. Por um lado, libertam-nos do jugo do trabalho. Erik Brynjolfsson, um professor do MIT e coautor do livro A Segunda Era das Máquinas, defende que desde que mantenhamos o controlo sobre estas ferramentas de alta tecnologia, podem ocorrer grandes benefícios. Com robots a fazerem o trabalho pesado, assim como uma grande parte do trabalho mental, ele antevê uma "Atenas digital" com mais tempo para lazer, como os antigos atenienses tinham para o desporto e para as artes.
Por outro lado, há muitos conservadores que partilham uma visão mais distópica. Levantam questões sobre como a maioria das pessoas se vai sustentar e, mais importante ainda, o que significa uma vida com sentido sem trabalho.
Neste cenário de mudança, o RBU desempenha um papel potencialmente importante no amortecimento do impacto desta enorme transição pós-trabalho. Pode também facilitar uma parte importante do novo panorama em que as transições entre trabalhos são a norma, com toda a incerteza que isso implica.
Precariedade - o novo normal
A revolução digital está a criar grandes oportunidades para as cidades e vários projetos URBACT estão a explorar as implicações desse facto. O projeto Techtown está direcionado para o papel da tecnologia digital como motor da inovação e do crescimento empresarial, especialmente em cidades de pequena e média dimensão. Ao mesmo tempo, o Interactive Cities está focado no impacto das plataformas digitais na administração urbana e no comércio.
Inversamente, o Gen-Y City examina o desafio de reter talento numa economia em que os jovens muitas vezes se vêm forçados a migrar para encontrar oportunidades. Enquanto esta situação beneficia os centros digitais urbanos da Europa, há outras cidades a debaterem-se para reter os melhores e que mais se destacam. Em parte, porque estes projetos decorrem num contexto em que os jovens foram, e continuam a ser, as maiores vítimas da Crise Económica Global de 2008 e da sua consequente queda. Os números do desemprego jovem continuam a ser persistentemente altos, especialmente no sul da Europa. Confrontados com a dívida, com a diminuição dos rendimentos reais e o aumento dos custos da habitação, os jovens da Europa enfrentam uma transição muito mais difícil para a vida adulta do que a dos seus pais.
Este novo mercado de trabalho, com um número crescente de situações de emprego precário a curto prazo, afeta particularmente os jovens e as pessoas menos qualificadas. O aparecimento de plataformas empresariais digitais é também um fator em desenvolvimento nesta mudança, especialmente em muitos mercados de trabalho urbanos. A Uber, a Deliveroo e outros oferecem comodidade ao consumidor mas com um preço para aqueles que prestam o serviço. Por toda a Europa, há processos a decorrer relacionados com a defesa dos direitos dos trabalhadores neste novo mundo de empregos da Gig Economy. Entretanto, o efeito prático são níveis acrescidos de precariedade e incerteza, especialmente ao nível dos trabalhadores menos qualificados no mercado de trabalho.
Curiosamente, alguns dos mais entusiastas defensores do RBU são milionários de Silicon Valley, como Elon Musk. Isto, por si só, é suficiente para alguns suspeitarem do conceito e para o considerarem como um mecanismo para encorajar os empregadores a pagarem baixos salários, subsidiados pelo Estado. Outros consideram, no entanto, que o RBU oferece uma camada de proteção financeira e social aos mais vulneráveis no mercado de trabalho; o grupo que Guy Standing rotulou como os Precários.
Desigualdade de género e o novo equilíbrio entre a vida profissional e privada
Um terceiro aspeto mais antigo deste debate está relacionado com a questão da desigualdade de género no mercado de trabalho. Não obstante compromissos políticos e legislação para assegurar um salário e condições iguais entre homens e mulheres, as grandes disparidades persistem. Os dados mais recentes da UE demostram que as mulheres recebem menos 16,3% pelo mesmo trabalho.
Os que consideram que o RBU ajuda na resolução destas questões identificam dois objetivos específicos que o rendimento pode apoiar. O primeiro é encorajar a entrada de mais mulheres no mercado de trabalho (embora alguns considerem que existem mais probabilidades do contrário). O segundo é o reconhecimento do valor dos cuidados, em ambos os extremos do espectro geracional, que desproporcionalmente recai sobre as mulheres. À medida que o número de pessoas idosas na Europa aumenta, a questão do pagamento dos cuidados está a ganhar força na agenda política um pouco por toda a parte.
As limitações do atual modelo de segurança social
No centro destes três argumentos está o estado do sistema de segurança social na Europa. Embora se trate de um quadro diversificado, existem algumas tendências gerais. Uma delas é que os sistemas estão a ficar mais limitados, com um número crescente de pessoas a viver em situação de pobreza, apesar das metas fixadas na UE 2020. Em grande parte da Europa do norte, com um modelo contributivo de segurança social construído no pós-guerra, existem divergências entre aqueles que possuem empregos seguros e bem pagos e os outros em posições precárias e com baixos salários. Os próprios sistemas foram largamente baseados num modelo contributivo assente no pressuposto de pleno emprego ou de quase pleno emprego. Estamos claramente muito longe desse cenário.
Já examinámos a precariedade crescente do mercado de trabalho. Na prática, isso significa que a relação com o trabalho tem cada vez maiores probabilidades de se basear em situações onde o emprego e o desemprego se alternam. O padrão mais provável é o do subemprego em massa. Para alguns na sociedade, pessoas com problemas de saúde mental com necessidade de cuidados, sempre foi assim. Mas estas pessoas já não são uma pequena exceção e poderão mesmo muito em breve passar a ser a regra.
Contra tudo isto, o Rendimento Básico parece uma excelente ideia... então qual é o obstáculo?
O Rendimento Básico Universal não é uma ideia unânime. Embora existam claros potenciais benefícios, não se trata de um modelo sem riscos. E embora a coligação a favor do conceito abranja um largo espectro político, desde ativistas anti pobreza a milionários da direita alternativa, o mesmo sucede com aqueles que a ele se opõem.
Ainda que exista apoio ao conceito em muitos setores da Esquerda tradicional, existem individualidades céticas. Benoit Hamon, candidato do partido socialista francês incluiu-o no seu manifesto e o Partido Trabalhista do Reino Unido constituiu um grupo de trabalho para examinar a sua viabilidade. Mas figuras importantes do Partido Trabalhista do RU têm receio de que apenas piore os níveis de apatia política entre os eleitores da classe trabalhadora. Numa recente entrevista na rádio, o veterano deputado Jon Cruddas alertou que um consenso entre a esquerda e a direita acerca desta questão política constituiria uma prenda eleitoral para o Partido da Independência do Reino Unido (UKIP), qualificando-o como “uma forma de futurologia mais próxima de Arthur C Clarke do que de Karl Marx”.
Também os sindicatos se encontram divididos, considerando o RBU como uma política potencialmente divisória que irá enfraquecer as condições dos trabalhadores. Na Finlândia, o economista-chefe da Organização Central dos Sindicatos Finlandeses (SAK), que conta com quase 1 milhão de membros, concluiu: “Achamos que o RBU leva a política social para a direção errada”. Explicando que esta política pode restringir o mercado laboral, desencorajando determinados grupos, incluindo as mães e as pessoas mais velhas, a aceitarem emprego. Está também preocupado com o facto de trabalhos de baixo nível não serem preenchidos. Na Finlândia, os sociais-democratas, principal partido da oposição, está contra a ideia, pois considera que dilui a legislação do salário mínimo nacional.
Para lá da divisão política, o cenário é igualmente confuso. Assim, enquanto o governo centro-direita finlandês lançou o programa-piloto do RBU, os conservadores do RU estão totalmente contra. Para os conservadores tradicionais, o Rendimento Básico recompensa a preguiça e é 'dinheiro público para quem não faz nada.' Estão também preocupados com os custos e não são os únicos.
Em junho de 2016, os eleitores suíços rejeitaram a introdução de um modelo de RBU num referendo nacional, tendo a sua viabilidade económica constituído um fator de peso. A proposta era de pagar 2.500 Francos Suíços (€2.329) aos adultos e SF625 por criança. A assembleia federal do país calculou um défice de financiamento anual de 25 mil milhões de Francos Suíços, o qual teria de ser colmatado por um aumento de impostos. Embora tenha sido contestado pelos apoiantes, os eleitores não ficaram convencidos. 77% dos eleitores rejeitaram a proposta nas urnas.
Independentemente do que acontecer a seguir, as cidades serão o palco principal
Não obstante uma posição contra ou a favor, talvez uma das melhores coisas no que respeita ao conceito de RBU é que está a forçar as pessoas a debater questões fundamentais sobre a nossa sociedade. Como solucionamos a crescente precariedade da vida profissional? Se estamos comprometidos com a coesão social, como gerimos a hemorragia de empregos resultantes da automatização? E, talvez a parte mais importante, o que significa ser um cidadão no século XXI? Que direitos e responsabilidades isso envolve?
Tendo por base estas questões, podemos separar a maioria das pessoas em dois campos. Num, temos os incrementalistas que acreditam que este é o próximo estágio de uma evolução gradual. Como resposta, devemos adotar as nossas políticas e práticas atuais para ir ao encontro das transições societais que vimos antes. No outro lado, estão aqueles que vêm a tecnologia e a globalização a criar uma importante mudança, que requer respostas radicais. Nas suas análises, um mundo já desigual está a tornar-se ainda mais desigual devido a estes desenvolvimentos e não podemos optar por permanecer indiferentes enquanto isto acontece.
Aqueles que estão prestes a implementar o programa-piloto em Barcelona estão neste último campo, juntamente com os pensadores radicais por toda a Europa. O risco e a inovação estão no coração da sua abordagem proposta. Quem irá rir por último? Só o tempo o dirá.
Texto da autoria de Eddy Adams apresentado a 10 de março de 2017
Submitted by Ana Resende on