O dilema da luta contra a pobreza urbana: investir em pessoas pobres ou em zonas desfavorecidas?
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13 November 2018Este artigo apresenta uma visão sobre o trabalho produzido pelo URBACT no âmbito da pobreza urbana e a sua contribuição para a Parceria Pobreza Urbana da Agenda Urbana para a União Europeia.

A pobreza urbana é um fenómeno complexo. Este artigo visa destacar alguns aspetos interessantes do problema da pobreza e algumas – parcialmente inesperadas – experiências de políticas de combate à pobreza. Também a longa história do URBACT no âmbito da questão da pobreza urbana será mencionada de forma resumida, na sequência dos projetos URBACT anteriores que constituíram um marco importante do esforço realizado desde 2012 até hoje.
A maioria das declarações deste artigo baseiam-se na investigação de Laura Colini (Colini-Tosics, 2017).
Pobreza urbana: tema complexo, sem soluções fáceis
A análise dos dados da pobreza ao longo do tempo e entre territórios revela muitos resultados interessantes e surpreendentes. Os dados mostram altos e baixos no sucesso da luta contra a pobreza: a percentagem da população severamente privada materialmente nos países da UE-27 diminuiu entre 2005 e 2009, de 11% para 8%, mas voltou a subir para 11% em 2012. Os efeitos da crise financeira foram especialmente fortes na Grécia, Hungria, Lituânia, Letónia e Itália, onde as taxas de privação aumentaram 7a 8% entre 2008 e 2012 (Comissão Europeia, 2014).
Não existe uma correlação direta entre as taxas de pobreza e o nível de desigualdades: em tempos de crescimento económico, a pobreza pode diminuir paralelamente ao aumento das desigualdades, embora desde a crise tanto a pobreza como a desigualdade tenham estado a aumentar.
Os padrões espaciais de pobreza são muito diversos nos diferentes países europeus: na Bulgária, Roménia e Hungria, as taxas de privação são muito menores nas cidades do que nas zonas rurais, enquanto na Áustria, Irlanda, Reino Unido e Bélgica, se passa exatamente o contrário, as taxas de privação são maiores nas cidades do que no resto do país. Por outro lado, a concentração territorial da pobreza urbana parece aumentar em todo o lado: de acordo com os resultados de um novo estudo, a Europa metropolitana está a tornar-se mais dividida, com crescentes disparidades de rendimentos que acompanham a crescente separação espacial entre os mais abastados e os mais pobres (Musterd et al, 2017).
A elaboração da estratégia Europa 2020 começou antes da crise. Um dos cinco grandes objetivos é o crescimento inclusivo com o intuito de reduzir em 20 milhões o número de pessoas em risco de pobreza ou exclusão social na UE em relação a 2010. Contudo, entre 2008 e 2012, este número aumentou 6,5 milhões, pelo que, o objetivo de redução da pobreza estabelecido na estratégia UE2020 não será cumprido: em vez de diminuir para menos de 20%, esta percentagem aumentou para quase um quarto (24,8%) da população total.
Bairros desfavorecidos e intervenções questionáveis
As formas mais visíveis de pobreza urbana são aquelas que estão territorialmente concentradas (centros urbanos, habitação social ou zonas periféricas).
As fotos ilustram essas diferentes configurações espaciais dos bairros desfavorecidos com base nos exemplos de Budapeste, Kosice e Sofia. Independentemente da sua localização espacial, essas zonas são designadas como “guetos” por políticos e tornam-se alvos de intervenções físicas. No entanto, é fácil cometer erros. Até mesmo as intervenções com as melhores intenções, se não se prestar atenção suficiente para se compreender as razões e os processos de privação e pobreza, poderão falhar o objetivo. Os casos que se seguem são exemplos de intervenções contraditórias em zonas desfavorecidas.
a) eliminar zonas transitórias (diminuindo a oferta habitacional necessária a preços acessíveis)
É muito importante compreender as funções que diferentes bairros desempenham no mercado imobiliário local. Algumas zonas desfavorecidas desempenham o papel de bairro transitório, em que os recém-chegados a uma cidade podem encontrar rendas a preços acessíveis e um baixo custo de vida. Assim que as condições pessoais melhoram, eles mudam-se para fora da zona. Estas zonas têm que ser distinguidas das zonas “sem saída” onde as hipóteses de se mudarem para qualquer outro local são muito baixas. Por conseguinte, uma visão estática sobre um bairro (a sua composição num determinado momento no tempo) nada nos diz acerca do seu papel real e dinâmico na cidade. Correspondentemente, tomar a decisão de demolir uma zona apenas com base no seu baixo estatuto social pode ter consequências desastrosas para o funcionamento do mercado imobiliário local.
A título de exemplo, podemos mostrar um bairro do centro de uma cidade holandesa. Esta é uma zona relativamente desfavorecida com oferta de habitação social propriedade de uma associação imobiliária. Visto que a liderança da cidade queria atrair de volta a população residente de rendimento médio e elevado dos subúrbios, os políticos lançaram a ideia de demolir a zona, substituindo a oferta “ultrapassada” por novas habitações de elevada qualidade. Isto teria obviamente um efeito desastroso, diminuindo as hipóteses desses grupos da população que utilizam esta zona mais acessível como um ponto de entrada no mercado imobiliário local. Não admira que tivessem tido lugar grandes lutas entre os inquilinos (a associação imobiliária) e a liderança da cidade. Os planos mais tarde foram alterados – em parte devido à crise financeira – no sentido de conferir maior importância à renovação.
b) demolir habitações de boa qualidade para enfrentar problemas sociais graves
No caso de bairros "sem saída", a demolição de habitações sociais pode ser inevitável. No entanto, poderá haver sempre questões a levantar se a demolição dos edifícios fisicamente aptos continuar a ser a única resposta para a alta concentração de problemas económicos e sociais. Na maioria dos casos, as demolições poderiam ter sido evitadas alterando atempadamente as políticas de atribuição de habitações no sentido de se criar bairros mais diversificados na mesma zona, evitando a demolição.
O edifício que aparece na fotografia fazia parte de uma zona de habitação social duma das grandes cidades francesas. Na última década, assistiu-se em França a uma grande atividade de regeneração do ambiente físico, com milhares de apartamentos demolidos (incluindo o edifício aqui mostrado). O objetivo era diminuir a elevada percentagem de habitação social e, ao mesmo tempo, combater os problemas de elevada criminalidade, desemprego e pobreza na região. No entanto, tendo em conta que mais de 40.000 famílias estão à espera de habitação social na conurbação desta cidade, eclodiram grandes debates políticos sobre a demolição de arranha-céus (de outro modo, fisicamente aptos). A decisão do município local de demolir foi largamente influenciada pelo facto das subvenções extra concedidas pelo Estado francês para a demolição tornarem esta opção economicamente viável face ao custo de intervenções integradas de regeneração, mais difíceis e complexas.
c) edifício renovado não desejado pelos residentes originais
As intervenções físicas têm que estar em harmonia com considerações de ordem social e financeira. Isto é especialmente verdade no caso da renovação/regeneração dos edifícios existentes: o nível de renovação e as condições financeiras influenciam profundamente as condições de vida dos residentes. Na sua aceção mais extrema, utilizando a renovação intencionalmente para alterar as condições sociais, inventou-se uma nova palavra: “renoviction” que se refere à estratégia de um senhorio despejar todos os inquilinos de um edifício alegando que está prevista uma renovação em grande escala.
Numa das zonas mais pobres de uma cidade húngara, ocorreu um exemplo de renovação diferente de consequências surpreendentes e não intencionais. A autarquia pretendia, em primeiro lugar, demolir um edifício em ruínas com 40 apartamentos T0 (sem água, sem instalações sanitárias nem casa-de-banho dentro dos apartamentos), mas depois mudou a abordagem tendo optado pela renovação. Os inquilinos foram colocados temporariamente noutros edifícios e todas as 40 unidades foram renovadas, instalando-se também a água nos apartamentos e possibilitando a existência no interior de uma sanita e de um pequeno chuveiro. Para grande surpresa da autarquia, a maioria dos inquilinos rejeitou mudar-se de volta para os apartamentos renovados. O motivo é bastante simples: na ausência de um sistema universal de subsídio de alojamento, os inquilinos pobres foram incapazes de cobrir o aumento dos custos de habitação, devido à introdução da nova despesa com a água nos seus apartamentos.
O primeiro esforço URBACT para conceptualizar a pobreza urbana e potenciais intervenções
O URBACT lançou um projeto em 2012 (Colini-Tosics, 2013) para analisar mais detalhadamente o problema da pobreza urbana e as formas de lidar com este. Um dos principais ensinamentos retirados foi de que nem todas as zonas segregadas podem ser consideradas problemáticas. A concentração de pessoas pobres num determinado bairro não é um problema em si mesmo, não há nenhum “ponto crítico” que identifique a segregação nociva. “A segregação pode tornar-se problemática se for resultado da ausência de alternativas e conduzir a bairros que não têm quaisquer oportunidades económicas, apenas instituições fracas: más escolas, falta de emprego, ruas sujas, criminalidade elevada, más condições de alojamento, má conectividade.” (Segundo as palavras do falecido Professor Ronald Van kempn, Utrecht, no vídeo Against Divided Cities – Colini et al, 2012.)
Outra lição é que as intervenções em zonas desfavorecidas têm de ser cuidadosamente planeadas. Existem muitos tipos de intervenções possíveis em zonas segregadas, a demolição não é, de todo, a única abordagem possível. “Se mais nada for feito, com a saída das pessoas e o derrube dos edifícios, é muito provável que o bairro "sem saída" seja replicado noutro lugar. Se as razões pelas quais um lugar particular se transformou num espaço sem saída não foram substancialmente alteradas, então, as forças estruturais criarão um outro. A noção de que se pode eliminar um problema demolindo o lugar, é ingénua e acarreta grandes custos humanos. “ (Segundo as palavras do Professor Georg Galster da Universidade Wayne no vídeo Against Divided Cities – Colini et al, 2012).
Como o demonstram os exemplos brevemente mencionados e os especialistas realçaram, é um grande dilema das políticas urbanas da luta contra a pobreza determinar em que medida se deve investir em pessoas pobres ou em zonas desfavorecidas e que tipo de intervenções se deve escolher.
Todos os três exemplos apresentados de intervenções contraditórias pertencem à segunda opção, políticas baseadas na zona, que se focam em unidades geográficas específicas e bairros desfavorecidos. O objetivo dessas políticas é melhorar a situação das pessoas que vivem nestas zonas, assumindo que, ao focarem-se em lugares com problemas específicos, melhorarão a situação de muitas das pessoas pobres. Sendo que existe um grande leque de intervenções possíveis em zonas desfavorecidas:
Medidas “Duras”: reestruturação física/demolição ou programas de requalificação das zonas pobres (por exemplo, regeneração/renovação de habitações, melhorando as infraestruturas, etc.)
“Estratégias de mix social”: alteração da composição social de zonas desfavorecidas com elevados níveis de segregação socioespacial atraindo moradores mais abastados (gentrificação forçada) e/ou deslocar pessoas desfavorecidas para zonas mais prósperas (quotas fixadas por lei, etc.)
Medidas “brandas”: promoção de competências, capital social e capacidades de pessoas que vivem em zonas desfavorecidas (por exemplo, a organização de ações de formação e programas de correspondência oferta/procura de empregos, festivais locais, etc.)
A abordagem alternativa chama-se “políticas baseadas nas pessoas” em que as intervenções não estão ligadas a qualquer nível espacial específico, não afetam diretamente as zonas desfavorecidas, mas podem ter um efeito positivo nas mesmas através da melhoria da situação das pessoas pobres independentemente do local onde vivem. Essas políticas são implementadas por domínio/setor, por exemplo, uma política de habitação social com vista a disponibilizar habitação a preços acessíveis àqueles que dela precisam, uma política educativa e escolar que promova a igualdade da qualidade da educação para todos os alunos, políticas sociais que procuram aumentar os níveis mais baixos de prestação de serviços públicos, uma política de mobilidade que garanta a igualdade de oportunidades de acesso por transportes públicos, de todas as partes da cidade, ao mercado de trabalho e aos serviços mais importantes, etc..
Os trabalhos do URBACT 2013 (Colini, et al, 2013) concluíram que nem as abordagens setoriais nem as baseadas em zonas são satisfatórias. Uma política setorial só alcançará alguns dos fatores, enquanto uma iniciativa baseada na zona só terá impacto sobre os fatores dentro dessa zona, e não a nível da cidade ou regional. Ainda assim há a tendência de considerar as políticas baseadas na zona como mais importantes, dada a sua relação custo/eficácia e o facto de que podem facilitar a implementação de políticas integradas, ao permitir que uma série de políticas de diferentes domínios sejam aplicadas simultaneamente e de forma coordenada. A desvantagem desta abordagem, no entanto, é que as pessoas desfavorecidas que não vivem nas zonas-alvo são negligenciadas. Além disso, estas políticas podem resultar no desalojamento de alguns residentes que se vêm forçados a abandonar a zona devido ao aumento dos preços da habitação em consequência da intervenção. Também se pode gerar um efeito de sucção sobre as pessoas necessitadas: os beneficiários de programas específicos tendem a deixar a zona mais desfavorecida e são substituídos por pessoas ainda mais pobres provenientes de outras partes da cidade (ou mesmo de outras cidades) que se deslocam para a zona devido aos serviços sociais prestados.
Esforços para explorar o papel das políticas nacionais de luta contra a pobreza
Politicas de luta contra a pobreza bem-sucedidas, através de intervenções setoriais, a regeneração de zonas desfavorecidas, ou uma combinação de ambas, são processos complexos e difíceis. A fim de encontrar o equilíbrio ideal entre intervenções setoriais e baseadas na zona, é necessária a integração das políticas, combinando políticas de diferentes níveis governamentais (integração política vertical) com as de diversos departamentos governamentais (integração política horizontal). Sendo também importante lidar com o aspeto da integração territorial, lidar com o fenómeno do “colchão de água”, em que os problemas mudam de uma zona de intervenção para outras partes da cidade. Neste processo, as políticas de luta contra a pobreza a nível nacional (iniciar e apoiar estratégias locais) assumem uma importância vital. É, todavia, evidente que existem grandes diferenças entre os países da UE: alguns possuem políticas nacionais de luta contra a pobreza urbana (e regeneração urbana), outros não.
No que diz respeito às ameaças crescentes de pobreza urbana e a sua concentração espacial, o URBACT lançou uma iniciativa para explorar as políticas nacionais existentes e as práticas de regeneração integrada de zonas desfavorecidas. O resultado desta iniciativa foi um seminário em Bruxelas, na primavera de 2015, e uma publicação contendo o resumo das políticas nacionais para a regeneração integrada de zonas desfavorecidas (Tosics, 2015).
As conclusões deste seminário afirmam que, embora as abordagens dos países da UE sejam muito diferentes, é um sinal importante que os dois maiores países da UE, a Alemanha e a França, tenham introduzido recentemente novas políticas voltadas para as zonas desfavorecidas, com um aumento substancial do apoio financeiro para as intervenções de regeneração. Por seu lado o representante da Comissão Europeia mostrou-se esperançado que a nova abordagem da Política de Coesão conduzirá ao aumento dos investimentos em estratégias urbanas, sendo intenção da Comissão , igualmente, dar um novo impulso à Agenda Urbana da UE.
Contribuição do URBACT para a Agenda Urbana da UE e a avaliação da ideia de Pacto Local
As atividades anteriores resumidamente enumeradas estabeleceram a contribuição ativa do URBACT para a Parceria Pobreza Urbana no âmbito da Agenda Urbana para a Europa. Como contribuição para este trabalho, o documento produzido pelos especialistas URBACT Laura Colini e Ivan Tosics (2017, não publicado) foi um passo importante para se determinar o Plano de Ação da parceria (UPP, 2018).
A Ação 7 deste Plano de Ação, intitulada “Política de Coesão pós-2020: Pacto local para a regeneração de zonas e bairros urbanos desfavorecidos (UDAN)” propõe o Pacto Local como instrumento multifundo para atribuir às autoridades urbanas um papel preponderante na conceção das suas estratégias de regeneração urbana de zonas urbanas desfavorecidas na Política de Coesão pós-2020. Com base numa abordagem de vários níveis entre os decisores políticos locais e nacionais, adota uma visão mista baseada no local e baseada nas pessoas, permitindo-lhe adotar a flexibilidade necessária para abordar as diferentes dimensões da pobreza urbana através de estratégias integradas.
Para avaliar os parâmetros de um pacto local, o URBACT lançou em 2018 um projeto designado “Combater a Privação Urbana: Um Pacto Local”. O objetivo, de reduzir as disparidades territoriais e combater a privação urbana, deverá ser alcançado centrando-se nas zonas desfavorecidas, enquanto as ações podem ser territorialmente mais dispersas, visto que muitos problemas podem ser tratados com intervenções fora das zonas desfavorecidas.
No âmbito deste projeto em curso, um grupo de trabalho composto por membros voluntários da Parceira Pobreza Urbana (que inclui quatro Estados-Membros: França, Alemanha, Polónia e Espanha e quatro cidades URBACT: Lille, Berlim, Lódz e Barcelona), acompanhados por especialistas URBACT, avaliam o modelo de governação multinível para a redução das disparidades urbanas. Além das cidades, as respetivas autoridades administrativas, as autoridades nacionais e regionais também participam de modo a tornar as orientações mais precisas e analisar as considerações da governação multinível.
A atividade é organizada através de uma série de laboratórios de política nacional realizados nos diferentes países participantes, reunindo todas as partes interessadas. Como resultado final, cada grupo de países de participantes a nível nacional, de região ou de cidade produzirá um “pacto” piloto integrado de cidade entre a cidade, o nível regional e o nacional
Todos aqueles que estão interessados neste projeto em curso poderam obter uma visão geral do mesmo durante o Festival da Cidade URBACT, realizado em Lisboa, em setembro, no walkshop 5: Combater a pobreza urbana a partir de baixo para cima.
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Texto da autoria de Ivan Tosics, apresentado terça-feira, 04/09/2018
Submitted by Ana Resende on