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Explorando os impactos de género da covid-19

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19 May 2020
Read time: 6 minutes

A necessidade de cidades com maior igualdade de género já foi reconhecida como uma prioridade para o URBACT e as suas partes interessadas, antes de se instalar a crise do coronavírus. Mas a situação dramática atual torna particularmente urgente o apelo à ação. Neste artigo, exploramos alguns dos impactos da crise nas questões de género até ao momento, e quais poderão ser os impactos a longo termo na dinâmica para a igualdade de género.

O que é claro é que as mulheres estão significativamente sobre-representadas no que agora se reconhece como serviços essenciais para a sociedade, sejam estes os setores da saúde e da prestação de cuidados, os supermercados ou o contexto educativo. Esta realidade coloca as mulheres firmemente no terreno no que toca a enfrentar a pandemia, com maior risco de exposição ao vírus.

Simultaneamente, é notório que menos mulheres ocupam lugares de decisão no que respeita a gestão e resposta à pandemia. Tal acontece apesar das observações recentemente destacadas pela revista Forbes sobre o evidente sucesso dos países liderados por mulheres na gestão eficaz da situação atual.

Contudo, que outros riscos e tendências vemos, o que significa isto para as mulheres agora e no futuro e o que podem as cidades fazer como parte da resposta imediata e a longo prazo e para oferecerem cidades equitativas do ponto de vista do género?

Empregos arriscados e empregos em risco

Já temos como certo que as mulheres constituem a maioria dos trabalhadores na linha da frente, frequentemente exercendo trabalhos mal pagos de cuidadoras, sujeitas a alto risco de exposição. Os trabalhadores mais mal pagos são os que tipicamente têm menos acesso ao trabalho flexível. Não podem trabalhar a partir de casa quando desempenham as funções essenciais de cuidar dos mais idosos ou dos que estão doentes, ou de manter os supermercados abertos e abastecidos.

Para além dos setores da saúde e da prestação de cuidados, a situação de emprego das mulheres é frequentemente vulnerável sob outras perspetivas. A investigação desenvolvida pelo European Institute for Gender Equality demonstra que um quarto das mulheres empregadas em toda a Europa noutros setores está em condições de trabalho precário e em maior risco de pobreza. Ademais, o encerramento de creches e escolas deverá provavelmente ter um impacto negativo na participação das mulheres no mercado de trabalho, pois é sobre elas que frequentemente recai a responsabilidade pelo acrescido fardo de assistência não remunerada que tal implica.

As mulheres empreendedoras podem ser desproporcionadamente afetadas na situação de crise. A maioria dos países adotou uma resposta de emergência e pacotes de apoio para o setor privado mas, havendo ainda poucos dados sobre a adesão e impacto nos empregos e negócios das mulheres, é difícil saber ao certo como serão afetados.

Sendo que as evidências de outros choques económicos (segundo a UNAIDS e o Banco Mundial) mostram que os rendimentos das mulheres recuperam mais lentamente do que os dos homens, existe o risco real de, na ausência de medidas proativas do governo a todos os níveis, poder dar-se um retrocesso relativamente à igualdade económica de género.

E, para além da crise imediata, se os governos perseguirem medidas de austeridade adicionais, as mulheres serão as mais afetadas com a perda de empregos do setor público, benefícios e serviços. O setor público é um empregador importante das mulheres por toda a Europa e as autoridades locais precisarão de tomar em consideração maneiras de medir e proteger os empregos das mulheres.

Riscos adicionais

Os riscos adicionais afetam mais aqueles que enfrentam múltiplas formas de desvantagem. Disparidades de género, raciais e económicas são amplificadas pela pandemia de um modo que expõe linhas de fratura. Mais grave ainda, vemos que a desigualdade é um fator de risco chave para a morbilidade causada pelo coronavírus.

Alguns grupos necessitam de apoio adicional, entre os quais as pessoas idosas a viverem sozinhas e famílias monoparentais lutando para fazer face à situação - em ambos os casos, com grandes probabilidades de serem mulheres. Outro grupo particularmente em risco é o das mulheres migrantes ou sem documentos, que podem sentir-se ansiosas relativamente ao acesso aos serviços de saúde ou necessitar de apoio linguístico.

Linda Gustafsson, Representante para a Igualdade de Género em Umea, Suécia – cidade Parceira Líder da Rede de Planeamento de Ação ‘Genderedlandscape’ – está igualmente empenhada em lembrar-nos que alguns grupos de homens também se encontram particularmente em risco. Ela reporta que a equipa de serviços sociais está determinada em chegar à população idosa a viver sozinha e isolada, para quem os impactos de género são conhecidos do município. “Sabemos que as mulheres mais idosas tendem a estar mais ligadas à sua comunidade e a ser mais resilientes, capazes de pedir ajuda ou de ser ajudadas do que os homens”, explica. “E nós temos isso em consideração na nossa resposta.” Dos dados recolhidos até agora, e por razões ainda desconhecidas, parece que, em cada país, os homens têm mais probabilidades de morrer de covid-19 do que as mulheres.

De acordo com o relatório da Gender Equal Cities, as mulheres utilizam mais os transportes públicos do que os homens – para irem trabalhar, ao médico ou fazerem as compras de supermercado. Isto coloca as mulheres em situação de maior risco de contacto com o vírus. Em muitos locais, os transportes públicos foram reduzidos ou encerrados, mas os trabalhadores mal pagos dos setores do retalho ou da prestação de cuidados ainda precisam de viajar.

Em alguns lugares, também existe uma ameaça à disponibilização de serviços essenciais de saúde sexual e reprodutiva durante a crise devido ao redireccionamento de recursos e ao encerramento / redução de horário de funcionamento de clínicas. Isto pode constituir um fator adicional de ansiedade e de riscos de saúde para mulheres grávidas que podem consequentemente protelar a procura de ajuda.

O maior risco de todos

Infelizmente, uma das tragédias evidenciadas mais do que nunca pela atual situação é o facto de que ficar em casa não significa ficar em segurança. As denúncias de abuso doméstico aumentaram em mais de 30% em alguns locais – desde que as restrições às deslocações foram implementadas. É necessário chamar a atenção para esta realidade, chocante para as sociedades europeias modernas, e encontrar mais respostas.

Uma das medidas mais urgentes para as cidades tomarem neste momento é a disponibilização de instalações adequadas e com condições de higiene para aqueles que precisam de escapar de uma situação perigosa em casa, para além de se assegurar que as organizações de proteção às mulheres e aos refugiados dispõem dos recursos necessários para criarem espaço extra, garantindo ainda um horário alargado de atendimento nas linhas de apoio e know-how tecnológico para a comunicação online.

Felizmente, muitas cidades estão a dar resposta. Madrid foi uma das primeiras cidades a lançar uma campanha, desde o início do confinamento; e o governo francês facilitou a utilização de quartos vazios, em colaboração com redes hoteleiras, com uma palavra passe para o acesso de mulheres em fuga de ambientes perigosos. Frankfurt, cidade parceira na rede Genderedlandscape, preparou espaço extra para mulheres e crianças em fuga de situações de violência, tendo ainda criado informação multilíngue. Lamentavelmente, a cidade prevê que o número de incidentes aumente à medida que a crise avança, mas, ainda assim, tenta preparar-se.

O que estamos a aprender sobre o espaço público?

Num momento em que existem várias políticas de confinamento por toda a Europa, ainda não é perfeitamente claro o que falta às mulheres e raparigas em termos da sua utilização e experiência do espaço público. Para muitas, a nova situação pode implicar saírem sozinhas e sentirem-se menos seguras devido ao facto de haver menos ‘eyes on the street’.

No entanto, para outras, apesar de ser mais provável saírem sozinhas, é possível que se sintam mais seguras graças ao decréscimo do crime e da violência nos espaços públicos, em parte consequência das restrições à vida noturna. Sem encontros com grupos de homens que normalmente poderiam causar-lhes ansiedade, algumas mulheres podem sentir-se livres de ocupar espaços que anteriormente evitavam.

O confinamento também está a revelar como é possível ter cidades mais amigas das famílias, percorríveis a pé, com menos congestão, melhor qualidade do ar – até mesmo ouvindo-se o canto dos pássaros pela primeira vez em anos. Este tipo de cidade tem sido desde há muito reclamado pelos ativistas pela integração das questões de género, como os de Viena, que desenvolveram guiões específicos para “cidades mais justas”. Em Kreuzberg, Berlim, já se está a improvisar uma resposta às novas realidades na circulação, através de vias cicláveis ‘pop-up’.

Que lições para a governação urbana futura?

A crise viu autarcas a tomarem a liderança na proteção e no serviço à população, por vezes mesmo oferecendo-lhes um alargamento de autoridade que lhes permitisse reagir a um cenário em constante evolução. Contudo, isto levanta questões relativas à governança, em particular na Europa onde as mulheres autarcas são menos de 15%.

As vozes de mulheres e raparigas precisam de ser ouvidas, incluindo para a tomada de decisões, agora mais do que nunca. Precisamos da compilação de dados, discriminados por sexo, sobre a própria doença, os impactos económicos, o peso da prestação de cuidados, os incidentes de violência sexual e abuso, e ainda relativos à recuperação da crise – a todos os níveis de governança.

Esta necessidade foi diretamente abordada pela UN Women, com claro apoio do Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, que referiu: “As mulheres e as raparigas devem ser colocadas no centro dos esforços de recuperação da covid-19. A igualdade de género e os direitos das mulheres são essenciais para ultrapassarmos esta pandemia juntos, para recuperarmos mais depressa e para construirmos um futuro melhor para todos.”

Linda Gustafsson espera que o momento atual desencadeie mais discussão sobre a dinâmica de poder nas famílias e uma apreciação mais equilibrada da importância dos diferentes trabalhos e funções na sociedade, incluindo uma mudança significativa no modo como reconhecemos e apoiamos cuidadores não remunerados.

Logo, podemos retirar uma inspiração positiva desta situação. Linda Gustafsson salienta que “Nós vemos que as coisas podem mudar depressa através do consenso interpartidário em políticas que temos vindo a propor desde há muito, tais como as relativas a subsídio de doença e mobilidade sustentável. Também vejo este como um momento de empoderamento para os governos locais. Estamos a responder rapidamente para mantermos os nossos cidadãos a salvo.

Há assim uma hipótese de tornar a experiência vivida em contexto de covid-19 numa oportunidade para mudar as coisas para melhor. Como referido por Jenna Norman, do Women’s Budget Group, UK “A crise da covid-19 colide com a crise a longo termo do sub-investimento na saúde pública e nas infraestruturas sociais, que afetam as mulheres mais violentamente. Agora a resposta não é mais do mesmo.”

Pode ser uma oportunidade para nos tornarmos mais conscientes das nossas infraestruturas sociais, incluindo o trabalho invisível, subvalorizado e frequentemente mal pago, que mantém as comunidades coesas, e que é predominantemente exercido por mulheres. Precisamos de uma apreciação continuada sobre o que são os serviços essenciais da nossa sociedade.

As cidades têm um papel a desempenhar para assegurar que não andamos para trás, para o que era assumido como sendo ‘normal’. Para além das questões que levantámos, apelamos às autoridades urbanas a que revejam os seus orçamentos e serviços sob a lente das questões de género e a que trabalhem com grupos locais de mulheres e outras organizações da sociedade civil / estruturas comunitárias para chegarem a todas as populações, incluindo as mais precárias.

Partilhe connosco no Twitter – usando os tags @URBACT e @CEMR_Equality – exemplos que conheça de cidades que estejam efetivamente a responder a alguma das questões que referimos.

Não se esqueça de ver a Iniciativa Gender Equal Cities no Knowledge Hub URBACT!

 

Com agradecimentos especiais a:

Linda Gustafsson e Annika Dalen, Cidade de Umea, Parceira Líder da rede Genderedlandscape, e a sua Perita Líder Mary Dellenbaugh-Losse.

Jenna Norman: Women’s Budget Group, UK e co-autora do relatório Gender Equal Cities.

 

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Texto original submetido por Sally Kneeshaw a 20 de abril de 2020