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Levando as cidades a rejeitar a exclusão em matéria de habitação como um ‘facto da vida’

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31 July 2020
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Este artigo baseia-se na conferência conjunta URBACT-UIA No one left behind’, que teve lugar a 26 de junho de 2020.

Poderá a covid-19 constituir um ponto de viragem na luta contra a condição de sem-abrigo? A segunda conferência web URBACT-UIA sobre o direito à habitação apelou às cidades a descobrirem.

A covid-19 deu um ímpeto alarmante ao sofrimento entre os mais vulneráveis por toda a Europa, mas também demonstrou o que o sentido de urgência, a vontade política e a mobilização podem fazer para abordar problemas estruturais, provando que estão disponíveis soluções para erradicar a condição de sem-abrigo. A necessidade urgente é manter essas iniciativas ao mesmo tempo que emergimos da crise.

Esta foi a mensagem essencial da segunda conferência web, organizada conjuntamente pelo URBACT e pela iniciativa Urban Innovative Actions (UIA) sobre ‘Cidades empenhadas no direito à habitação’, que decorreu a 26 de junho de 2020.

As decisões dos governos podem salvar vidas

Perante a covid-19, as autoridades públicas e oficiais enfrentaram desafios sem precedentes ao terem de lidar com o crescente número de pessoas em dificuldades. Estas dinâmicas apenas vieram exacerbar as tendências de longo prazo no crescimento do número de pessoas sem-abrigo, identificadas no recente Fifth overview of Housing Exclusion in Europe’ pela FEANTSA e pela Fondation Abbé Pierre. Este relatório assinala um aumento de 70% dos sem-abrigo na Europa ao longo dos últimos 10 anos e um alarmante crescimento do número de sem-abrigo menores, jovens, LGBTQI, mulheres sós, requerentes de asilo e pessoas sob proteção internacional.

A habitação é um fator determinante de saúde e a crise do sistema de saúde no contexto da covid-19 tem vindo a atingir sobretudo as pessoas sem alojamentos dignos. Não obstante, alguns governos por todo o mundo agiram prontamente com diferentes medidas. Por exemplo, mais de 90% das pessoas que dormiam nas ruas do Reino Unido tiveram um lugar seguro para ficar durante os picos do vírus.

S. Coupechoux e C. Serme-Morin, autores do relatório ‘Fifth overview of Housing Exclusion in Europe’ enfatizam que estes esforços por parte dos governos – com o objetivo de acomodar as pessoas a dormir na rua, para prevenir a disseminação do vírus da covid-19 – demonstram que “a condição de sem-abrigo não é sistémica e pode ser erradicada se a vontade política, o financiamento da colaboração intersectorial e os recursos humanos estiverem alinhados na prossecução de um mesmo objetivo”.

No entanto, estando a Europa a emergir do pior período da crise, ainda não é claro se e como os governos irão transformar medidas de emergência de curto-prazo em soluções permanentes. Os ministérios da habitação nos Países Baixos, no País de Gales e dirigentes de Bruxelas, Lyon, Paris, Barcelona, Madrid e Londres já anunciaram planos para tomar em consideração soluções pós-covid de longo-prazo para várias formas de exclusão relacionadas com a habitação.

Da gestão à erradicação da condição de sem-abrigo ao nível da cidade

Ao nível local, várias cidades da UE têm vindo a experienciar as mesmas tendências na questão dos sem-abrigo, sob diversas formas no que respeita ao fenómeno, às capacidades e ao empenho político das administrações públicas na abordagem ao assunto. A conferência web URBACT-UIA explorou a variedade de abordagens das cidades, incluindo a co-conceção de estratégias à escala da cidade, criando redes de solidariedade ou lançando projetos inovadores.

A cidade de Ghent (BE) lidera uma rede URBACT de nove cidades chamada ROOF que tem como objetivo o Functional Zero Homelessness – por outras palavras, erradicar a condição ‘estrutural’ de sem-abrigo. Pretendem atingir esta meta através: da recolha de dados rigorosos sobre a questão dos sem-abrigo usando a metodologia ETHOS Light, que foi desenvolvida para medir a condição de sem-abrigo ao nível da UE; do trabalho com a sociedade civil, instituições públicas e setor privado na mudança da gestão para a erradicação da condição de sem-abrigo; e adotando o modelo Habitação Primeiro (Housing First - HF).

Está provado que a Habitação Primeiro resulta mesmo: em muitas cidades que a usam, as pessoas permanecem nas suas casas ao longo de anos. Também é eficaz em termos de custos e, no final, mais barata do que o abrigo. E é melhor para a saúde porque é mais provável que as pessoas recorram menos ao sistema de saúde.

 

Patricia Vanderbauwhede, Líder de Projeto em Ghent

 

A rede é uma oportunidade para as cidades partilharem experiências e aprenderem umas com as outras enquanto trabalham na co-conceção de planos de ação integrada para soluções estruturais em matéria de habitação. Já beneficia da presença de cidades com uma longa experiência em HF, tal como Odense (DK), ou com experiência significativa de uma legislação progressista, tal como Glasgow (UK).

Podem ser retiradas seis lições chave dos exemplos de Ghent e da Metrópole de Lyon:

  1. Melhor prevenção é uma pré-condição para erradicar e condição de sem-abrigo – Ghent adotou um plano integrado para a redução da pobreza para coordenar ações intersectoriais, tais como a mediação no atrasos no pagamento de rendas e o apoio a pessoas em momentos chave da vida que são previsivelmente geradores de situação de sem-abrigo.
  2. Aumentar o parque habitacional é essencial – através de planeamento à escala da cidade para habitação acessível, de recolha de financiamento, da expansão do parque habitacional para os mais carenciados e da melhoria da qualidade das habitações já existentes – e.g. projeto UIA ICCARUS usando fundos renováveis, em Ghent.
  3. A disponibilização de alojamento deve responder a diversas necessidades – Ghent está a desenvolver um modelo HF em colaboração com empresas locais de habitação social com o objetivo de duplicar as unidades disponíveis para arrendamento (de 266 para 532) e a experimentar projetos de unidades de habitação baseados na miscigenação social. A metrópole de Lyon está a implementar o projeto UIA Home Silk Road, que ensaia a reconversão de um edifício emblemático para acolher temporariamente 30 famílias, criando, no bairro, oportunidades culturais e de emprego em economias circulares.
  4. Os serviços de proximidade são essenciais para manter um apoio social suficiente.
  5. Os sistemas de alojamento temporário e orientação precisam de ser otimizados, especialmente para pessoas sem estatuto legal.
  6. É necessário trabalhar a diversas escalas – envolvendo as partes interessadas locais, incluindo o setor do voluntariado e ainda advogando aos níveis nacional e europeu pelo alinhamento e coordenação das políticas para a questão dos sem-abrigo e para a habitação.

A habitação é crítica para políticas justas e de acolhimento

As estratégias das cidades também precisam de ser adaptadas a exigências específicas dos requerentes de asilo e pessoas sob proteção internacional que enfrentam desafios e riscos particulares no que toca a exclusão da habitação, como já acima identificado. Para além do mais, o relatório conjunto FEANTSA - Fondation Abbé PierreHousing Exclusion’ assinala a desadequação das atuais condições de receção e alojamento, que se encontram sob pressão sobretudo nos países de acolhimento na Europa do Sul. Por exemplo, em Espanha os pedidos de asilo aumentaram 45 vezes nos últimos seis anos. Normas e práticas variam entre os estados membros da UE, mas os traços comuns são:

  • Um sistema de acolhimento de emergência ultrapassado e desadequado;
  • Acesso a condições de habitação dignas dificultado pelos abusos do Regulamento de Dublin e o endurecimento da legislação nacional;
  • Medidas inadequadas ou ad hoc, para pessoas em situação de vulnerabilidade (menores, vítimas de violência, pessoas com problemas mentais ou de saúde, etc.)
  • Ausência de opções de alojamento para migrantes em trânsito.

Thomas Lacroix do CNRS (FR) explica que o papel das cidades na disponibilização de melhores políticas de inclusão – sendo a habitação uma área fundamental – assistiu a uma mudança tremenda no mundo. De acordo com a sua análise, a tendência crescente dos governos nacionais delegarem nas cidades a responsabilidade de proporcionarem políticas de inclusão levou ao aumento do protagonismo das mesmas, que têm procurado apresentar-se – muitas vezes em contradição com as diretrizes da política nacional  –  como acolhedoras, de chegada e solidárias, mudando as suas políticas locais de integração a longo-prazo para a receção e inclusão a curto-prazo.

A cidade de Atenas é exemplar neste sentido: no rescaldo de 2015, quando a crise de receção dos refugiados atingiu o pico, a cidade juntava-se a redes e parcerias com cidades europeias: a campanha Eurocities para a iniciativa Solidarity Cities e, mais tarde, a parceria da Agenda Urbana para a UE para a Inclusão de Migrantes e Refugiados. Nessa altura, Atenas também lançou o projeto UIA Curing the Limbo para a inclusão de refugiados. O projeto de inovação centra-se na habitação como parte de uma abordagem holística de inclusão de recém-chegados no mercado de trabalho e numa vida sociocultural ativa ao nível do bairro. UmaUnidade de Facilitação de Acesso à Habitação (Housing Facilitation Unit) gere a oferta de habitação e atua como um centro para a disponibilização de vários serviços, tais como subsídios condicionados, planeamento de finanças domésticas e apoio legal ligando arrendatários e proprietários.

O objetivo é criar uma solução dinâmica e holística para pessoas que tenham estado no limbo. Queremos mesmo ajudá-los a transitar de uma situação inicial de ajuda humanitária para uma vida que eles acabem por escolher na cidade. Criámos uma unidade de facilitação de acesso à habitação [ou seja], um mediador que ajuda as pessoas a transitarem de um sistema de alojamento de emergência para a independência.

 

Antigone Kotanidis, gestor de projeto UIA, Atenas

 

Quando números crescentes de requerentes de asilo precisaram de habitações adequadas na sua área urbana – também devido a políticas de habitação social negligenciadas ao nível nacional – a cidade de Tessalónica (EL) avançou com a criação de uma agência local de arrendamento gerida ao nível da cidade. O esforço foi suportado pela realização de um consórcio de partes interessadas cuja concretização contou com a ajuda da rede URBACT Arrival Cities.

Já a cidade de Antuérpia optou por uma abordagem diferente, tendo implementado o projeto UIA CURANT, no âmbito do qual foi criada co-habitação de modo a ligar 81 jovens refugiados desacompanhados com 77 habitantes locais chamados ‘buddies’ que atuaram como facilitadores no processo de inclusão no bairro ao longo de três anos. O alojamento providenciado pelo município incluía 37 unidades para arrendamento de proprietários privados, 4 unidades renovadas, uma unidade para residência de estudantes e 16 unidades modulares, estas últimas num único local. Este projeto requereu aprendizagem mútua, adaptações comportamentais e algumas frustrações relacionadas com a dificuldade em transmitir o conceito de co-habitação, que não era familiar para os habitantes. O projeto acabou por se tornar um sucesso, com alcance e apoio continuado por parte dos serviços sociais, e o desafio atual é manter e ampliar este modelo.

 

 

Quando há vontade há um caminho, e o momento é agora

 

A Europa atravessa uma situação preocupante no que toca as questões dos sem-abrigo e da exclusão em matéria de habitação. Simultaneamente, não é uma situação inevitável e as políticas públicas, em conjunto com o empenho das cidades, podem acabar com a condição de sem-abrigo. A covid-19 tem potencial para se tornar um ponto de viragem, partindo dos esforços excecionais para alojar as pessoas durante a crise e de novas maneiras de providenciar serviços àqueles que mais deles necessitam – tanto através das administrações públicas como graças ao empenho de voluntários.

A discussão na conferência web conjunta URBACT-UIA em junho de 2020 mostra que a condição de sem-abrigo não pode ser erradicada se as ações públicas não forem coordenadas e integradas, incluindo tratar as deficiências das políticas atuais para a migração, tanto ao nível europeu como dos estados membros.

O novo pacote de recuperação ao nível da UE e outras medidas de recuperação nacionais podem criar oportunidades significativas. Têm surgido sinais promissores relativamente ao reforço do papel da UE na luta contra a condição de sem-abrigo, com a Comissão Europeia preparada para lançar no próximo ano um Plano de Ação alinhado com o Pilar Europeu dos Direitos Sociais.

Mas as cidades estão na linha da frente a lidar com a exclusão em matéria de habitação e com a questão dos sem-abrigo, sendo que muitas fazem campanha para políticas europeias de acolhimento mais justas e baseadas nos direitos humanos. Programas da UE como a iniciativa UIA e o URBACT podem continuar a fornecer recursos valiosos e a apoiar as cidades no combate à condição de sem-abrigo. Para além disso, a colaboração continuada ao nível europeu envolvendo a UIA e o URBACT – mas também parceiros incluindo a FEANTSA, a Fondation Abbé Pierre, a Housing Europe e outros – pode desempenhar um papel chave num maior incentivo para as cidades recusarem a própria ideia de que a condição de sem-abrigo e a exclusão da habitação são um ‘facto da vida’.

Os programas UIA e URBACT juntam os esforços de várias organizações europeias e internacionais para apelarem a direitos à habitação adequados e acessíveis, disponibilizando um espaço para o intercâmbio de práticas entre governos de cidades.

Este relato é baseado na conferência web URBACT-UIA de 26 de junho de 2020 ‘No one left behind’ – e a segunda de uma série de eventos Knowledge Hub dedicados ao tema ‘Cidades empenhadas no direito à habitação’.

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